sábado, 20 de fevereiro de 2010

O DIAGNÓSTICO DA DEFICIÊNCIA EM CONCURSOS PÚBLICOS

Após a Constituição Federal de 1988, para o acesso aos cargos públicos de provimento efetivo, a pessoa deficiente conta com reserva de vagas, exceto em hipóteses justificadas.




A base de cálculo para a incidência do percentual legal que assegura a reserva de vagas é a quantidade de vagas disponíveis no processo seletivo, e não o quantitativo de cargos existentes no órgão, quer providos quer não.



A definição da base de cálculo é uma das questões mais debatidas no Poder Judiciário, além da análise sobre o argumento de impossibilidade aritmética de cumprir a reserva de 5%, quando a divisão resulta em número fracionado. Os tribunais brasileiros têm decidido que, mesmo quando a fração é inferior a meio, o arredondamento para cima é a solução mais equânime para salvaguardar o direito social de acesso ao mercado de trabalho.



Outra questão, posterior ao reconhecimento da idoneidade da reserva de vagas, diz respeito aos critérios para diagnóstico da deficiência nos concursos públicos.



Segundo a ONU, o mundo abriga cerca de 610 milhões de pessoas deficientes. A maioria delas vive em países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. Para o Censo 2000 do IBGE, 24,6 milhões de brasileiros possuem algum tipo de deficiência, algo como 14,5% da população nacional. Antes de 2000, os levantamentos indicavam a existência de menos de 2% de deficientes no País – distorção corrigida pela melhora dos instrumentos de coleta de informações, que agora seguem as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).



A deficiência visual – não necessariamente cegueira completa – é a mais presente nos brasileiros, representando quase a metade (48,1%) da população deficiente. Em seguida, vêm as deficiências motoras e físicas, que somam 27,1%. A terceira maior incidência é a deficiência auditiva (16,6%) – considerados os diferentes graus de perda auditiva, desde a surdez leve até a anacusia – e, por último, aparece a deficiência cognitiva, que atinge 8,2% dessa população.



Vários estudos mostram que não existe consenso sobre a melhor denominação para se referir à população deficiente. O termo pessoa portadora de necessidades especiais (PNE) é considerado inadequado, porque todas as pessoas precisam de cuidados especiais em algum momento da vida, como é o caso das mulheres grávidas e dos idosos. É preferível usar a expressão pessoa deficiente ou deficiente.



Para além dos debates sobre o vocabulário mais adequado ao tema, também o conceito de deficiência é alvo de reflexões teóricas profundas. O caso do HIV/AIDS e da concessão do Benefício da Prestação Continuada (BPC) é um exemplo simbólico forte.



O BPC é um benefício assistencial voltado para idosos com idade acima de 65 anos e/ou deficientes, ambos com renda inferior a ¼ do salário-mínimo. Considerando a dificuldade de encaixar a doença como uma ponte para a experiência da deficiência, peritos-médicos do INSS têm diferentes percepções sobre o HIV/AIDS. Diante de pessoas em estágio avançado da doença e que preenchiam os demais requisitos, 82% deles deferiam o BPC, enquanto os outros 18% indeferiam.



No caso dos concursos públicos, não se sabe o que determina o corte de elegibilidade, ou seja, qual é a compreensão de deficiência vigente entre os peritos-médicos, se lastreada no modelo médico e/ou no modelo social de deficiência. Não se sabe quem são os deficientes e quais deles são elegíveis para concorrer dentro da margem de reserva. Os editais de concursos públicos mais recentes não abordam esses aspectos, mas uma breve análise sugere que a medicalização das lesões é o critério preponderante e/ou determinante, pois as principais fontes para julgamento são os laudos médicos e as inspeções, com exclusão e negligência de dados sociais. Com isso, se o corpo não traz a marca visível da deficiência, os riscos de indeferimentos abusivos aumentam.



A falta de legislação federal sobre concursos públicos, apesar de projetos de lei em trâmite, é indício de que, se existem critérios, eles são potencialmente aleatórios e voláteis, ainda mais quando os peritos-médicos costumam ser temporariamente contratados pelas fundações responsáveis pelos certames.



Assim como nos casos de visão monocular e daltonismo, é possível que uma pessoa com paralisia cerebral leve, sem mobilidade de um dos dedos dos pés, seja considerada deficiente para fins de concorrência às vagas reservadas em concursos – ou o contrário.



A ausência de critérios transparentes delimitados favorece a multiplicidade de interpretações sobre quem é deficiente para essa finalidade, pois é possível, por exemplo, que uma pessoa seja considerada deficiente para fins de concorrência às vagas reservadas em concursos públicos e não para a fruição do BPC. Nisso não há paradoxo, pois os critérios para concessão podem não ser todos coincidentes entre si.



O desafio, no caso dos concursos públicos, é estabelecer critérios claros para que cada candidato seja tratado do mesmo modo no processo de seleção para as cotas. A falta de definição das ferramentas conceituais que os peritos-médicos possam usar para tomar suas decisões de modo mais sistemático e uniforme reduz as chances de objetividade na seleção dos candidatos deficientes e amplia o risco de idiossincrasias pessoais dos avaliadores interferirem na definição da situação dessas pessoas, como indica o exemplo do HIV/AIDS e do BPC. O Poder Judiciário é escolhido como plano B para corrigir equívocos, mas o déficit teórico dos juízes sobre o tema, salvo exceções, costuma repercutir mal nas decisões judiciais.



A deficiência é conceito complexo que, além de reconhecer o corpo com lesão, denuncia a estrutura que aparta do convívio social a pessoa deficiente. A reserva de vagas funciona como mecanismo de mobilidade social do deficiente ao longo da vida. Ações afirmativas nesse sentido contribuem para a concretização de um projeto de justiça social urgente: a integração dos deficientes. É evidente que se, por um lado, o modelo médico permite erros e/ou diagnósticos incompletos ou injustos para fins da elegibilidade às vagas reservadas, por outro, ao menos viabiliza alguma resposta constitucional – pior seria sem ele. Mas, se as fraudes nos exames se dão em razão de perícia exclusivamente lastreada no modelo médico, essa é uma inferência importante para a revisão do processo como hoje ele ocorre.



A seriedade das juntas médicas não exime o Poder Público de revisar o sistema de seleção em respeito aos princípios que sustentam e justificam as ações afirmativas, que segregam para promover inclusão. Um modo de seleção que permite às pessoas que não experimentam a deficiência, apesar de suas lesões, concorrerem na cota para deficientes talvez seja falho, o que o situa aquém dos anseios constitucionais. A constatação do problema é o primeiro passo para uma reflexão.

Arryanne Queiroz


Delegada da Polícia Federal e Membro do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (ANIS)
Revista Jurídica Consulex nº 314


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