quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Rerum novarum

Coisas novas. Elas são clamadas pela constante necessidade que o homem tem de romper com aquilo que considera senil. Consequência do desgaste que o tempo exerce sobre as práticas reputadas antigas, a busca de novidade esbarra, às vezes, no despreparo para assumir a descarga elétrica que a inovação impõe. Daí, o perigo do maniqueísmo. Anjos e demônios. Bondade e maldade. Antigo e moderno. Agir como se o passado fosse descartável, como se nada nele pudesse ser aproveitado para a composição do futuro, lembra o ato de quem, querendo surpreender, arranca as próprias pernas, sob o argumento de que, doravante, devemos andar com próteses. Pode até ser. O problema, contudo, virá à tona quando o iluminado perceber que seu desprezo pela divina composição do corpo fê-lo olvidar que carne, osso e sangue não enferrujam e dispensam manutenção. A mudança precisa operar-se com parcimônia. Mudança é adaptação. Mas não há adaptação sem técnica. Técnica, pela perspectiva de Arnold Gehlen, é o nome que se dá ao aparato por intermédio do qual limitações humanas são aliviadas, fortalecidas e substituídas. O homem, a rigor, não nasceu adaptado a meio algum.


Diferentemente do pinguim, que nasce adaptado ao frio e, por isso, vive no frio; diferentemente do morcego, que nasce adaptado à noite e, por isso, constitui-se num ser de hábitos noturnos; diferentemente do camelo, que nasce adaptado às agruras do deserto e, por isso, vive nos desertos como se estivesse no paraíso, o homem, sem técnica, não se adapta a nada.

O homem não foi desenhado para percorrer longas distâncias a pé. Não foi moldado para sobreviver na água e, o pior, sequer nasceu com asas para voar. Por conseguinte, o homem cria maquinários que, como dito acima, aliviam, fortalecem e substituem deficiências orgânicas.

O alívio, o fortalecimento e a substituição (funções da técnica) levam o homem a transpor barreiras, recriando o meio, sem necessariamente romper com o passado (utilizando o exemplo daquele que arrancou as pernas para usar próteses mecânicas). Assim, o homem (que não tem presas, garras ou ferrões) desenvolve lanças, espadas, pistolas, que aliviam a fragilidade para defender-se de outros animais, os quais exibem armas como elementos corpóreos; o homem, que, naturalmente, não consegue correr longas distâncias sem extenuar-se (como um tigre) cria o automóvel, que faz isso por ele, fortalecendo uma habilidade pouco desenvolvida, com a qual a natureza o dotou; o homem, que, obviamente, não pode voar, criou o avião, que lhe substitui a ausência de asas. Em todas essas situações, o homem muda. Em nenhuma delas, todavia, ele precisou eliminar braços ou pernas à toa. Complementou-os tão somente.

Na política, a mudança também não se dá sem técnica. O novo, no cenário do poder, igualmente se efetiva para aliviar, fortalecer e substituir falhas estruturais. Essas falhas vão sendo identificadas aos poucos. Serão aliviadas, ali onde se constata que a um auxiliar foram dadas mais atribuições do que as que ele é capaz de carregar (dividem-se atribuições). São fortalecidas ali onde um auxiliar pode dar conta do recado, mas lhe faltam mecanismos operacionais (os anteparos lhe são outorgados). São substituídas ali onde um auxiliar é a sinonímia do descaso, da inoperância e da incompetência (troca-se de auxiliar). O impasse está em saber quando o mais correto é aliviar, fortalecer ou substituir. Isso requer técnica, que se consubstancia sem agonia ou aperreio. Lançando mão de Millôr, “chama-se de decisão rápida nossa capacidade de fazer besteira imediatamente”. Logo, quem exige uma reforma de inopino (a implantação acelerada do novo), ou quer um governo sem pernas, ou enxerga o mundo com próteses. De qualquer maneira, é do tipo que (rápido ou não) só pensa e fabrica besteira.



CLÓVIS BARBOSA é Advogado. Foi Presidente da OAB-SE e Conselheiro Federal da OAB Nacional.

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