quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

CASO NARDONI E O DIREITO DE NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO

Da autodefesa, que integra a ampla defesa, também faz parte o privilégio ou princípio da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere), que compreende: (i) o direito ao silêncio; (ii) o direito de não declarar contra si mesmo; (iii) o direito de não confessar; (iv) o direito de declarar o inverídico, sem prejudicar terceiros; (v) o direito de não praticar nenhum comportamento ativo que lhe comprometa (ou que lhe prejudique) no âmbito probatório; e (vi) o direito de não produzir nenhuma prova que envolva o seu corpo.




Como se vê, o acusado tem todo direito de não falar nada (direito ao silêncio); se falar, conta com o direito de nada dizer contra si mesmo; mesmo dizendo algo contra si, tem o direito de não confessar. A confissão, por sinal, só constitui prova válida quando for espontânea.



Do direito de não autoincriminação faz parte o direito de não praticar nenhum comportamento ativo que lhe comprometa (ou que lhe prejudique) no âmbito probatório. Exemplo: direito de não participar da reconstituição do crime (reprodução simulada do delito), direito de não ceder material gráfico para exame grafotécnico etc.2



Com base no Pacto de San José e na Constituição, os Ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal concederam o Habeas Corpus nº 83.096 em favor de um acusado que não queria ser submetido a teste de perícia de voz. Ele foi denunciado pela prática de associação para o tráfico de drogas, após escuta telefônica. A defesa alegou ofensa ao art. 8º, inciso II, alínea g, do Pacto San José, segundo o qual ninguém será obrigado a depor, fazer prova contra si mesmo ou se autoincriminar. Ao julgar o caso, a Turma acompanhou o voto da relatora da matéria, Ministra Ellen Gracie, para assegurar ao paciente o exercício do direito ao silêncio (sic), ou seja, direito de não autoincriminação.



Nos atos que não exigem um comportamento ativo do agente, seu comparecimento é obrigatório. Exemplo: reconhecimento pessoal.



No famoso Caso Nardoni (em que o pai e a madrastra são acusados de terem matado Isabela) foi discutida, pelo STJ, a amplitude do direito de não autoincriminação.3 A Quinta Turma rejeitou, por unanimidade, habeas corpus impetrado pela defesa em favor de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá. Na ordem de habeas corpus impetrada, a defesa pedia o trancamento da ação penal no que diz respeito ao delito de fraude processual, que também foi imputado ao casal. De acordo com a acusação, teria o casal limpado o local do crime logo após a morte da vítima.



O delito de fraude processual está previsto no art. 347 do CP, nestes termos: “Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perigo: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafo único. Se a inovação se destina a produzir efeito em processo penal, ainda que não iniciado, as penas aplicam-se em dobro”.



O pedido de habeas corpus, pelo que se noticiou, tinha como fundamento a Constituição Federal, que asseguraria que ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo. O casal não poderia ter sido acusado também de ter inovado o local do delito. “Eles não poderiam ser algozes de si próprios, no sentido de tentar deixar provas que os autoacusassem”, ponderou o apelo da defesa no habeas corpus.



Para o Relator do habeas corpus no STJ, Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, o direito constitucional que garante à pessoa não se autoincriminar “não abrange a possibilidade de os acusados alterarem a cena do crime, levando peritos e policiais a cometerem erro de avaliação”.



Uma coisa, portanto, é o direito de não praticar nenhum ato que comprometa (ou prejudique) o acusado. Outra bem distinta é inovar (alterar) o local dos fatos para, eventualmente, não ser incriminado. O que o princípio da não autoincriminação protege é uma atividade negativa (ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo). O que se pediu no habeas corpus foi a desconsideração de um ato positivo (inovação do local). Uma coisa é o direito de não ceder sangue para efeito de sua própria incriminação. Outra bem distinta consiste em limpar o sangue que já faz parte do corpo de delito (vestígios que se encontram no local do delito), com o intuito de induzir em erro o juiz ou o perito. A distinção é importante, porque uma coisa é o direito de se não autoincriminar, outra diferente é o não direito de alterar as provas do delito.



Andou bem a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça ao enveredar pela seara dessas distinções. O direito de não autoincriminação vem, diariamente, sendo construído pela jurisprudência. Com a decisão ora comentada, um ponto mais ficou elucidado. Com acerto, na nossa opinião.

Luiz Flávio Gomes


Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri e Mestre em Direito penal pela Universidade de São Paulo (USP). Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).
Revista Jurídica Consulex nº 312

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