terça-feira, 2 de março de 2010

O NOVO ESTUPRO NA ÓTICA CONSTITUCIONAL

Fruto da iniciativa da Comissão Parlamentar Mista da Exploração Sexual, a Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, foi promulgada com a promessa de aperfeiçoar o enfrentamento dos crimes sexuais.




Não é isso que tem ocorrido na prática.



Vários julgados têm interpretado a norma de forma mais benéfica a estupradores e pedófilos, criando um quadro pior do que o anterior. Quanto mais repugnante o ato criminoso, maior será o benefício. Incrível?



Vejamos.



Juristas pregam que se forem praticados vários atos criminosos no mesmo contexto, o estuprador deve responder por apenas um crime. Assim, a prática forçada à conjunção carnal terá uma pena provável de 6 (seis) anos de prisão. Se, além da conjunção carnal, houver sexo anal, a pena será a mesma. Se a essa prática for acrescido o sexo oral (introdução do pênis na boca da vítima), qual a pena? Também 6 (seis) anos. E se após tudo isso o criminoso repetir todos os atos? Adivinhem!



Com o novo entendimento, estupradores contumazes, condenados a 12, 20, 50 ou mais anos de prisão, estão conseguindo a revisão de suas penas para 6 (seis) anos ou próximo a isso. Vários já ganharam a liberdade. Outros estão na fila dos tribunais.



E não para por aí.



A nova Lei exige autorização das vítimas para a investigação e o processo. Se elas não tiverem forças para isso (por trauma, conivência da família ou do meio social em que estão inseridas) ou temerem retaliações, qual o resultado? Impunidade.



E mais: tem-se exigido autorização das vítimas mesmo quando da prática do estupro resulte lesão “leve” (quebra de nariz ou mandíbula), lesão grave (aborto, perda de membro etc.) ou a própria morte. É a primeira vez que a punição de um assassinato dependerá de autorização da vítima! Só não esclarecem como a morta irá se pronunciar (reviram o conselho de Paulo Maluf, para piorá-lo: “Se estuprar, mate!”).





PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE



Interpretar a nova Lei de forma omissa viola a Constituição e os tratados internacionais que regem a matéria, pois desprotegem os direitos fundamentais de todos à segurança e à dignidade sexual. Havendo aparente conflito entre estes e a liberdade dos condenados, resolve-se pelo princípio da proporcionalidade.



Desenvolvido para evitar os excessos do poder absoluto e sintetizado na máxima “Não se abatem pardais disparando canhões” (Jellinek), referido princípio tem sido repensado para resguardar a pessoa não apenas da ação (excessiva) estatal, mas também de sua omissão.



Assim, a proporcionalidade ganhou outra vertente, consistente na proibição de proteção deficiente (Üntermassverbot), oriunda da doutrina e jurisprudência alemãs.



O Supremo Tribunal Federal já prestigiou esse princípio, exatamente para garantir a dignidade sexual (RE nº 418.376-MS, j. 09.02.06). Discutia-se se o estuprador que se amasiasse com a vítima (engravidada por ele) poderia ser absolvido, na forma do art. 107, VII, CP.



Após o voto do Ministro Gilmar Mendes, o STF refutou a impunidade em nome da proibição de proteção insuficiente, pois “De outro modo, estar-se-ia a blindar, por meio de norma penal benéfica, situação fática indiscutivelmente repugnada pela sociedade, caracterizando-se típica hipótese de proteção insuficiente por parte do Estado, num plano mais geral, e do Judiciário, num plano mais específico (...)”.



A discussão no plenário da Corte Maior foi agitada e demarcou o grau da repulsa jurídico-social ao estupro. A Ministra Ellen Gracie comparou a situação da vítima a uma escravidão sexual e o Ministro Ayres Brito, questionado se a prisão privaria a vítima de seu marido, irritou-se: “Livrar a adolescente da convivência com o agressor será um grande bem”.



Sob esse enfoque, encaremos doravante as polêmicas da nova Lei. Advirta-se que, havendo tensão ou conflito de direitos fundamentais (dos réus ou das vítimas), deve-se buscar a proteção mais adequada possível a um dos direitos em risco, e da maneira menos gravosa ao outro, sem permitir o sacrifício integral de um deles (OLIVEIRA, 2008:320,323).





CONCURSO DE CRIMES



O novo art. 213 é um tipo penal misto de conteúdo cumulativo, ou seja, prevê várias condutas não fungíveis entre si, que geram a obrigação de punição individual de cada ato criminoso, conforme doutrina mais autorizada (BARBAGALO; SILVA JÚNIOR). Interpretação contrária ofende a Constituição.



Com efeito, o acusado tem direito constitucional a um julgamento justo, que implica uma pena proporcional a seus atos (não excessiva). Por sua vez, a vítima tem direito à liberdade sexual (já violado pelo estuprador, sem que o Estado pudesse ter impedido). Consumado o crime, a vítima tem também direito a um julgamento justo, com a fixação de uma pena que puna todos os atos criminosos contra ela praticados. Por fim, a coletividade tem direito a uma punição correta, para que o exemplo punitivo não incentive outros a cometer os mesmos atos. Aliás, esta é a maior função do direito penal: evitar a continuidade do crime e garantir o direito constitucional à segurança de todos os cidadãos/ãs.



Nesse trilhar, é patente que cada ato sexual importante direcionado ao corpo humano ofende bens jurídicos variados. A introdução do pênis ou outro objeto em qualquer orifício corporal demonstra o grau de perversidade do criminoso e gera danos e dores diferentes e humilhantes às vítimas. Beneficiar os condenados com a impunidade, aplicando apenas uma pena, servirá de incentivo à criminalidade sexual, pois será mais vantajoso “usar e abusar” das vítimas de todas as formas possíveis. O único limite dos tarados será sua própria criatividade!



Portanto, a tese da pena única viola a proibição de proteção insuficiente, pois destrói ou mitiga o direito constitucional à dignidade (art. 1º, III), à liberdade (inclusive sexual, art. 5º, caput), à segurança (art. 5º, caput, e art. 144) e à incolumidade física e psíquica (art. 144).



Nessa esteira, o próprio direito constitucional dos condenados à igualdade (art. 5º, caput) e à individualização da pena (art. 5º, XLVI) restaria violado com a pena única. Ora, aquele que cometer apenas um ato criminoso (sexo oral, por exemplo) teria a mesma pena daquele que praticar outras violações importantes (sexo oral + anal, sexo vaginal + anal etc.). A pena do menos “culpável” seria excessiva, pelo menos em comparação com a do outro. A fixação de pena-base diferenciada (art. 59, CP), pregada por alguns, não resolveria o problema, pois o pequeno aumento decorrente não seria compatível com a natureza do ato violento praticado e seus danos à dignidade sexual.



Por outro lado, a pena justa (punição para cada ato importante) não gera qualquer excesso punitivo contra a liberdade dos condenados. Estes não têm o direito de cometer vários crimes e ser punidos apenas por um. Afinal, emendando Jellinek, não se protegem pardais alimentando gaviões!





AÇÃO PENAL



• A discriminação do feminino



A nova Lei, em substituição à ação penal privada, instituiu como regra a ação penal pública condicionada à representação (art. 225, caput, CP). A ação será pública incondicionada apenas se a vítima for menor de 18 anos ou pessoa vulnerável (art. 225, parágrafo único, CP).



No ponto, seguiu-se o caminho do legislador de 1940: deixar a investigação ou processo a critério da vítima. Dizia-se que a “boa intenção” da norma era garantir a intimidade das vítimas, evitando escândalos.



Esse entendimento era coerente com o sistema então implantado. A violência sexual era considerada ofensa aos costumes, e não à pessoa ou à sua dignidade. A Lei visava preservar a tradição, os costumes sexuais, independente do grau de violência e dos danos sofridos pelas vítimas.



Na sociedade de então, ao marido era permitido estuprar suas esposas, em nome do debito conjugal. Se fosse estuprada por terceiro, a mulher sequer podia oferecer queixa sem a autorização marital, por ser considerada INCAPAZ, conforme art. 35 do Código de Processo Penal (só revogado em 1997!). Portanto, a ação penal não visava proteger a intimidade das vítimas, mas a de seus familiares, principalmente maridos e pais.



Nesse contexto, a norma penal incentivava o estuprador a se casar com a vítima, livrando-a da solteirice. Isso porque a “desonrada”, que oficialmente tinha perdido a virgindade com o estupro, não conseguiria arrumar um casamento. Essa norma, só revogada em 2005, complementava o conselho de Paulo Maluf (estupra, mas não mata!), revigorando-o: estupra, mas casa!



Por isso, o estupro foi o único crime cometido com violência ou grave ameaça que não exigia punição obrigatória, nos termos do Código Penal de 1940, pois sua repressão não era considerada de interesse público (LIMA, 2009:83).





• A reação do STF em nome da proteção eficiente



Inconformado com o sistema omisso da norma de 1940, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula nº 608, forjada para estabelecer investigação e processo obrigatórios quando o estupro for praticado com violência real. Interpretou-se que o crime é de ação pública incondicionada, em razão da regra dos crimes complexos (art. 101, CP).



Com a edição da Lei nº 9.099/95, deu-se uma guinada (constitucional) nesse entendimento.



É que o art. 88 daquela Lei passou a exigir representação para o crime de lesão corporal leve. Portanto, o crime de estupro praticado mediante violência física deveria seguir o destino de seus crimes constituintes. Pelas regras do crime complexo, a ação penal voltaria a depender de autorização das vítimas (representação ou queixa). Destruiu-se a Súmula nº 608... Será?



Chamado a dirimir a questão, o Supremo Tribunal Federal não se conformou com esse entendimento. Ao julgar o HC nº 82.206, manteve integralmente a Súmula nº 608, ficando claro que não é a complexidade do crime de estupro que gera a obrigatoriedade de punição, mas a própria gravidade do fato, a repugnância social e sua hediondez. Para garantir a dignidade sexual, o STF optou por interpretação francamente constitucional. Na prática, revogou tanto o Código Penal (na parte em que previa ação privada) quanto o art. 88 da Lei nº 9.099/95. Foram ambos considerados, implicitamente, inconstitucionais para garantir a proteção suficiente.



Acatando esta orientação, o Superior Tribunal de Justiça passou a considerar a ação penal incondicionada no estupro, inclusive quando proveniente de grave ameaça, sem resultar lesões físicas (HC nº 27.383-PE e REsp nº 479.679-PR).





• A inconstitucionalidade do novo art. 225



Assim, o novo art. 225, caput, é flagrantemente inconstitucional, pois protege insuficientemente as vítimas, afastando-se da jurisprudência constitucional já consagrada no País.



Ora, o crime referido é hediondo, mesmo em sua forma simples, como previu a nova Lei (art. 1º, V, Lei nº 8.072/90), reforçando sua reprovabilidade social. Não se concebe que crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia, e equiparados pela Constituição à tortura e ao terrorismo (art. 5º, XLIII), dependam de autorização das vítimas para punição.



Não se protege a intimidade das vítimas deixando o agressor impune. Elas já foram violadas, abusadas, sua intimidade destruída durante os atos aberrantes! O Estado não garantiu sua privacidade e dignidade. Devolver o problema para elas é diminuir a repugnância social a esses crimes e superproteger os estupradores.



O novo art. 225, caput, protege a intimidade, sim, mas apenas a do estuprador! É inconstitucional por proteger insuficientemente os direitos fundamentais do ser humano.





• Estupro qualificado pela lesão grave ou morte



Para impedir a proteção insuficiente, a Procuradoria-Geral da República (PGR) busca no STF a inconstitucionalidade parcial do art. 225 (ADI nº 4.301). Pede-se que o crime de estupro do qual resulte lesão grave ou morte se submeta à ação penal pública incondicionada.



É recomendável que a PGR adite o pedido para se declarar inconstitucional todo o caput do art. 225, independentemente da gravidade do resultado, nos termos da Súmula nº 608.



Com aditamento ou não, espera-se que o STF, seguindo sua tradição humanística, declare mais uma vez que o estupro, em qualquer de suas formas (com violência ou grave ameaça), é de ação penal pública incondicionada, conforme já sacramentado naquela Corte Constitucional.





CONCLUSÃO



Ante o exposto, conclui-se que:



 O novo crime de estupro não alterou a solução jurídica anterior nas hipóteses de pluralidade de ações sexuais violentas contra a vítima no mesmo contexto fático. Entendimento contrário é inconstitucional, por ofensa ao princípio da proporcionalidade (proibição de proteção insuficiente).



 A ação penal do novo crime de estupro é pública incondicionada, independentemente da idade ou vulnerabilidade das vítimas, nos termos da Sumula nº 608 do STF e da jurisprudência posterior, que acolheu, implicitamente, o princípio da proibição de proteção insuficiente. Dessa forma, o art. 225, caput, do CPP é completamente inconstitucional.

Fausto Rodrigues de Lima


Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal (MPDFT).

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