terça-feira, 2 de março de 2010

ASSÉDIO MORAL: A MULHER COMO VÍTIMA

Assediar é cercar, importunar, perseguir etc. Já no ambiente de trabalho, atitudes do empregador ou preposto consistentes em inferiorizar, desqualificar, ou seja, humilhar de forma reiterada com palavras, gestos e amea­ças o empregado, desestabilizando-o emocionalmente, configuram-se assédio moral.




Com o tratamento dispensado por quem mantém autoridade em assimetria profissional, o empregado passa a se sentir ignorado, envergonhado, magoado, menosprezado, o que pode levá-lo inclusive a pedir demissão. Aliás, na maior parte das vezes, este é o objetivo do perverso assediador, que deseja ver o empregado desacreditado e com perda da autoestima. É de se observar que um único ato desabonador não se caracteriza assédio moral. Deve, contudo, ser vivamente combatido, para evitar que se instale de forma definitiva.



Nos termos do art. 2º da Lei paulista nº 12.250/06, configura-se assédio moral atos: “I – determinando o cumprimento de atribuições estranhas ou de atividades incompatíveis com o cargo que ocupa, ou em condições e prazos inexequíveis; II – designando para o exercício de funções triviais o exercente de funções técnicas, especializadas, ou aquelas para as quais, de qualquer forma, exijam treinamento e conhecimento específicos; III – apropriando-se do crédito de ideias, propostas, projetos ou de qualquer trabalho de outrem. Parágrafo único. Considera-se também assédio moral ações, gestos e palavras que impliquem em desprezo, ignorância ou humilhação ao servidor, que o isolem de contatos com seus superiores hierárquicos e com outros servidores, sujeitando-o a receber informações, atribuições, tarefas e outras atividades somente através de terceiros; na sonegação de informações que sejam necessárias ao desempenho de suas funções ou úteis à sua vida funcional; na divulgação de rumores e comentários maliciosos, bem como na prática de críticas reiteradas ou na de subestimação de esforços, que atinjam a dignidade do servidor; na exposição do servidor a efeitos físicos ou mentais adversos, em prejuízo de seu desenvolvimento pessoal e profissional”.



Essas e outras condutas antiéticas desestabilizam o empregado e, por conseguinte, a relação deste com o ambiente de trabalho, em claro prejuízo a todos os envolvidos.





ASSÉDIO MORAL DECORRENTE DO ASSÉDIO SEXUAL



O assédio sexual tipificado no art. 216-A do Código Penal, por força da Lei nº 10.224/01, integra o capítulo “Dos Crimes contra a Liberdade Sexual” e assim dispõe: “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”. Também a dignidade das relações trabalhista-funcionais é protegida por este dispositivo. (Bitencourt, 2008.)



Ainda hoje é comum a oferta de uma remuneração salarial maior à mulher em troca de favores sexuais, sendo a recusa por parte desta mal aceita pelo homem, em geral o empregador, que então passa a assediá-la moralmente, em razão do assédio sexual malsucedido.





ALCANCE DO ASSÉDIO MORAL



O assédio moral pode ocorrer tanto na linha vertical, quanto na horizontal. Por exemplo: pessoa hierarquicamente superior à vítima [gerente da empresa ou o próprio empregador x empregada(o)] ou que exerce a mesma função. Mas não é somente nas relações de trabalho que isto se verifica. Na lição de HIRIGOYEN (2003), “a assiduidade do assédio moral nas associações, principalmente filantrópicas, bem demonstra que o fato não está ligado apenas a critérios econômicos, rendimentos ou concorrência no mercado, mas à ambição de poder. Esses espaços, em que os técnicos da comunicação e da filantropia deveriam trabalhar em harmonia, estão naufragados em episódios não falados, em dores veladas e, por vezes, em cinismo”.



O assédio moral pode ocorrer também no meio familiar. Neste caso, o que caracteriza o assédio moral é a personalidade dominante do assediador. Cite-se a mulher que, submetida a perseguições e humilhações no trabalho, ao chegar em casa desconta toda a sua ira, impaciência e repulsa naqueles que mais ama, em especial os filhos. A propósito, afirma HIRIGOYEN: “Não se morre por causa das agressões, mas perde-se uma parte de si mesmo. Volta-se para casa, a cada noite, exausto, humilhado, deprimido. E é difícil de recuperar-se”. ( 2003, p. 66.)



Uma das formas de assédio moral praticado contra a mulher é desdenhar de sua capacidade para realizar determinado trabalho. Neste sentido, “onde houver um homem e uma mulher, qualquer tratamento desigual entre eles, a propósito de situações pertinentes a ambos os sexos, constituirá uma infringência constitucional”. (SILVA, 2007, p. 214.)



Com efeito, no âmbito laboral, a realização do trabalho deve se dar em condições de igualdade entre o homem e a mulher, sob pena de violação ao Texto Constitucional (CF, art. 5º, I). E mais: conforme decidiu o Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região “(...) demonstrado, nos autos, que a Reclamada tinha conduta discriminatória, humilhante e constrangedora em relação à Reclamante, através de seu preposto, configurou-se o assédio moral, sendo devida a indenização respectiva, nos termos dos arts. 186 e 927 do CCB”. (RO-4ª T., Rel. Des. Luiz Otávio Linhares Renault, v.u. 24.06.09.)



É manifesto que os efeitos psicológicos no assediado dependem da forma como este lida com a situação. Mas, na mulher, o assédio moral sofrido no ambiente de trabalho repercute diretamente no seu cotidiano, em especial, na vida familiar, causando sérios prejuízos.





CASUÍSTICA



A banalização do assédio moral deve ser evitada a todo custo, não se configurando tal instituto meras broncas no empregado desatento. Vale, contudo, mencionar o caso de uma bancária que foi dispensada dois dias depois de comunicar sua gravidez ao empregador e sofreu aborto espontâneo. Na reclamação trabalhista proposta perante o Tribunal Regional do Trabalho da Oitava Região, alegou que o chefe sempre lhe fazia propostas com conotação sexual e a ameaçava quando recusava. (...) O Reclamado (banco) se opôs à acusação de assédio sexual, por falta de provas, sustentando que a funcionária não apresentou registro do fato na polícia, nem certidão de decisão judicial condenando o gerente pela prática de tais atos. Nada obstante, o juízo de primeira instância entendeu configurado o assédio sexual e condenou o Reclamado ao pagamento de indenização no valor de R$ 50 mil. Esse valor foi aumentado para R$ 70 mil pela Corte Regional, que reconheceu o abalo emocional decorrente de constrangimentos e humilhações sofridas no ambiente de trabalho, sendo tal decisão confirmada pela Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho (AIRR nº 251/2005.103.08.40-5).



Um outro caso de dano moral que merece destaque é o de uma bancária que durante um ano e meio exerceu suas funções confinada no porão da empresa – local sujo, mal iluminado, isolado e impróprio para o cumprimento do contrato de trabalho –, submetendo-a a gerência, ainda, a apelidos jocosos (“ratazana”, “gata borralheira”, “cinderela”), ofensivos à sua dignidade, personalidade e imagem perante os colegas, afetando-a no plano moral e emocional, pelas características da discriminação e reiteração no tempo. Em grau de recurso, decidiu o Relator, Desembargador Ricardo Artur Costa e Trigueiros, “fixar indenização reparatória em importe mais expressivo que aquele fixado na origem: a uma, em face da capacidade do ofensor, um dos maiores bancos privados do País; a duas, pelo caráter discriminatório, prolongado e reiterado da ofensa; a três, pela necessidade de conferir feição pedagógica e suasória à pena, mormente ante o descaso do ofensor, que insiste em catalogar a prática como ‘corriqueira’”. (TRT-2ª Região – RO-4ª T., v.u. 30.05.06.)



O uso de trocadilhos com a intenção de denegrir a imagem da empregada é outro exemplo a ensejar o pagamento de indenização por dano moral, cujo desideratum é ao mesmo tempo compensatório e pedagógico. (TRT-3ª Região – RO-4ª T., Rel. Des. Luiz Otávio Linhares Renault, v.u.11.02.09.)



À guisa de exemplo, no tocante à elevação de metas de vendas para salvar-se da demissão, transcreve-se excerto do seguinte julgado: “A sujeição dos trabalhadores, e especialmente das empregadas, ao continuado rebaixamento de limites morais, com adoção de interlocução desabrida e sugestão de condutas permissivas em face dos clientes, no afã de elevar as metas de vendas, representa a figura típica intolerável do assédio moral, a merecer o mais veemente repúdio desta Justiça especializada. Impor, seja de forma explícita ou velada, como conduta profissional na negociação de consórcios, que a empregada ‘saia’ com os clientes ou lhes ‘venda o corpo’ e ainda se submeta à lubricidade dos comentários e investidas de superior hierárquico, ultrapassa todos os limites plausíveis em face da moralidade média, mesmo nestas permissivas plagas abaixo da linha do Equador. Nenhum objetivo comercial justifica práticas dessa natureza, que vilipendiam a dignidade humana e a personalidade da mulher trabalhadora. (...) O empregado é sujeito e não objeto da relação de trabalho e, assim, não lhe podem ser impostas condutas que violem a sua integridade física, intelectual ou moral. Devida a indenização por danos morais [art. 159 do CC de 1916 e arts. 186 e 927 do NCC]. (TRT-2ª Região – RO-4ª T., Rel. Des. Ricardo Artur Costa e Trigueiros, v.u. 10.05.05.)



Carinhos e carícias não permitidos também configuram assédio moral. Veja-se a ementa a seguir:



DANO MORAL. Configura-se situação de assédio moral o constrangimento de subordinada a carinhos não solicitados e indesejados, no ambiente de trabalho, associado a cobranças públicas de regularização de situação financeira particular e dissociada da empresa.



VALOR. Conforme parâmetros postos pelo e. STJ, o valor da indenização por danos morais deve atender não apenas a reparação, mas também o critério pedagógico e o critério punitivo. Majoração para R$ 50.000,00.



(TRT-4ª Região, 6ª T., Beatriz Zoratto Sanvicente, Juíza-Relatora no exercício da presidência, j. 21.05.03.)





Diante dos julgados trazidos à colação, fica claro o sofrimento da vítima de assédio moral.





DAS PROVAS



Na falta de legislação federal tipificando o assédio moral, os magistrados têm baseado suas decisões em provas testemunhais, fotos, e-mails, cartas, bilhetes, fax, gravações etc. Neste sentido: “É admissível, no processo do trabalho, como meio de prova válida, a gravação de conversa, quando realizada por um dos interlocutores, consoante entendimento dominante na jurisprudência. Na espécie, o alegado assédio praticado pela Reclamada, quando do retorno da autora ao trabalho após licença-maternidade, somente poderia ser provado pelas gravações juntadas aos autos. Logicamente, o registro das referidas conversas não poderia ser feito com autorização prévia dos demais interlocutores, pois seria superficial, já que os envolvidos não falariam o que realmente estão a pensar ou, então, ensaiariam um diálogo, seja para se proteger ou defender a empresa, configurando-se a parcialidade. Sendo assim, mostra-se razoável a gravação efetivada pela Reclamante, como a forma mais viável de demonstrar suas alegações; ao revés, estaria impedida de comprovar suas pretensões, o que caracterizaria flagrante cerceio ao direito de produção de provas”. (TRT-3ª Região – RO-6ª T., Rel. Des. Jorge Berg de Mendonça, v.u., 25.05.09.)



Extrai-se de julgado do Tribunal de Justiça paulista que “Não representa gravação clandestina, de modo a qualificar-se como prova obtida por meio ilícito, a gravação de conversa entre os próprios interlocutores, ainda que a pessoa que se encontra do outro lado da linha não tenha conhecimento de que a conversa estaria sendo gravada”. (8ª CC, Rel. Des. Fonseca Tavares, j. 03.02.93, RJTJESP 143-199).



Relativamente à dispensa da prova objetiva do prejuízo para a caracterização do dano moral, ver julgado do TRT-2ª Região (RO-11ª T., Rel. Des. Carlos Franciso Berardo, v.u. 13.11.06), fundado na firme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria.





LEGISLAÇÃO



O assédio moral ainda pende de tipificação por lei federal, mas já é previsto na legislação de vários Estados da Federação, como São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul, Bahia e Pernambuco, e também na de dezenas de Municípios, a exemplo de São Paulo, Guarulhos, Campinas, Bauru, Jaboticabal, Natal, Cascavel, Londrina, Maringá, Foz do Iguaçu, entre outros.



Importa destacar que o art. 483 da Consolidação das Leis do Trabalho estabelece as hipóteses em que o empregado poderá considerar rescindido o contrato de trabalho e pleitear a devida indenização, e, por isso mesmo, deve ser utilizado como parâmetro pelo legislador, assim como a Lei nº 9.029/95 (art. 4º, I e II), que proíbe a adoção de práticas discriminatórias e limitativas para o acesso ou manutenção da relação de emprego. Afinal, a honra e a dignidade das pessoas são bens que receberam a proteção da Constituição Federal de 1988 (arts. 1º, 3º e 5º), devendo ser reparada qualquer transgressão.



Anote-se que o PL nº 4.742/01, em trâmite na Câmara Federal, tipifica o assédio moral no trabalho em novo dispositivo (art. 146-A) a ser acrescentado no Capítulo VI do Código Penal, que trata dos crimes contra a liberdade individual, porém, o Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, o então Deputado Aldir Cabral, defende em seu parecer que tal definição seja ajustada no rol de crimes inerentes à periclitação da vida e da saúde (art. 136-A).



Independentemente do posicionamento a ser adotado, urge a elaboração de lei que estabeleça os parâmetros para a configuração do assédio moral, a fim de se coibir reiteradas violações aos direitos dos trabalhadores.





CONCLUSÃO



A prática do assédio moral causa sérios danos psicológicos ao assediado, mas também traz consequências econômicas para as organizações. É que o estado de perturbação do empregado poderá levar à queda na produção ou à alteração da qualidade do produto, influindo negativamente na imagem da empresa, provocar acidente de trabalho ou induzir à aposentadoria precoce.



Nada obstante, para caracterizar-se o assédio moral é necessária a prática reiterada, voluntária, proposital, que induz à degradação do ambiente de trabalho, causando danos à saúde da vítima, debilitando-a de tal forma, emocional e psicologicamente, que a demissão se apresente como a única forma de cessar o sofrimento.



As mulheres, heroínas da dupla jornada, não podem continuar a ser discriminadas, cabendo a todos lutar pela igualdade de gênero, em todos os setores da vida humana.



A relação entre os empregados ou entre estes e os empregadores deve ser saudável e de mútuo respeito. Assim, incumbe ao Estado, aos sindicatos, às associações, órgãos de classe etc. adotarem medidas de conscientização, no sentido de prevenir o assédio moral. Palestras, consultas a psicólogos e outros especialistas devem ser realizadas, bem como a criação de norma interna, todas com caráter preventivo.



A especificidade da condição feminina deve sempre ser considerada, mas os detentores dos meios de produção e os trabalhadores também necessitam se empenhar nesta luta, que não é apenas da mulher, mas de toda a sociedade.

Tereza Rodrigues Vieira e Marta Scalco


TEREZA RODRIGUES VIEIRA é Pós-Doutora pela Université de Montreal (Canadá), Doutora em Direito pela PUC-SP e Université de Paris. Possui Especialização em Bioética na Faculdade de Medicina da USP. Professora e Pesquisadora do Mestrado em Direito na Universidade Paranaense (Unipar). Advogada em São Paulo.



MARTA FERREIRA SCALCO é formanda do Curso de Direito da UNIPAR, campus Umuarama.

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